“Ever tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better.”
(Samuel Beckett)
José Aguerrido de Oliveira caiu pela terceira vez. Sua visão estava comprometida e embaçada. Três malditas quedas em menos de vinte minutos. Não era nada bom, nem um pouco!
Suas pernas e braços já exaustos, no entanto ainda tinha o controle. O vigor e o bom condicionamento físico da mocidade já se foram há muito. O corpo inteiro dolorido. Lutar aos quarenta e oito anos é burrice, pensava. Mas fazer o quê? A necessidade era grande, se impunha. Boxeador: era só o que sabia ser. Seus ídolos: Muhammad Ali, Mike Tyson, Éder Jofre e Popó Freitas. Fazia parte da estatística social brasileira: era um negro corpulento, de um metro e oitenta e dois, que crescera em uma família pobre. Não teve incentivos e nem se interessou por estudar. Mas sabia bater, isso sabia. A hipoteca da casa atrasada dois meses, contas e mais contas a vencer. Não tinha jeito. Receber murros para se sustentar era algo que já fazia há muitos anos, talvez aguentasse mais um. Era o que esperava.
Estavam no décimo primeiro assalto, e o adversário, apesar de ostentar a força e disposição da juventude, não sabia se poupar. Chegara muito afoito no começo da luta e mostrava sinais de cansaço. Já vira muitos fazerem isso, inclusive ele mesmo, quase trinta anos atrás. Sabia que o mais importante era manter-se em pé e se movimentar, aproveitando todas as dimensões do ringue. Mesmo para o perdedor, a quantia a ser embolsada era razoável, mas não poderia ser derrotado antes do último assalto, o décimo segundo, ou perderia muito dinheiro.
Jab, direto; jab, jab, direto; gancho, cruzado. Droga, pugilar com fome é foda! José nem viu de onde veio a pancada. No queixo. Bem no meio da porra do queixo! Não ambicionava muito, só não queria cair mais uma vez antes do último assalto, não aguentaria mais uma queda. A visão se fechou. Enquanto perdia os sentidos, anestesiado pelo golpe, indo em direção à lona, fez um instantâneo balanço de sua vida até agora: teve dois casamentos fracassados, foi pai ausente, e aguardava a iminente ordem de despejo que viria. Que merda, ia beijar o chão!
O som do corpo ao atingir o solo foi duro e seco. Um. Que bom, não perdi a consciência. Dois. Abra os olhos e pisque algumas vezes. Três. Preciso levantar. Quatro. Essa carcaça velha parece chumbo de tão pesada. Cinco. Isso, um pé de cada vez. Seis. Suba firme e devagar. Sete. Já enxergo melhor. Oito. Estou de pé, vejam, estou de pé! O juiz o avaliou minuciosamente com seu olhar inquisidor e contraiu levemente o rosto, esboçando o que parecia ser um sorriso, quase imperceptível, e deu prosseguimento ao combate.
Os últimos segundos do assalto passaram voando. O gongo tocou. José nem lembra como foi o décimo segundo. Perdeu por unanimidade, mas não por nocaute. Parte do orgulho ainda estava intacto. Tinha aguentado!
No caminho de volta pra casa, a pé (precisava de cada centavo que ganhou e não iria desperdiçá-los com ônibus ou metrô), José divagava. O rosto todo fodido e inchado, as pernas latejando de cansaço, as juntas das mãos inflamadas, nada disso matava o tiquinho de esperança e a sensação de dever cumprido. Almejava sua cama e o sono merecido, mas não conseguiria dormir de uma vez, estava feliz!
Depois de passar por vários cruzamentos, avenidas e ruelas, estava a quarteirões do apartamento onde morava, localizado num prédio velho, sujo e malcuidado, quase caindo aos pedaços, no centro da cidade. Mais um entre tantos outros edifícios da vizinhança. Há anos, desde que saiu da liga profissional por chegar aos quarenta anos e aceitou participar de lutas clandestinas, José faz o mesmo trajeto de volta pra casa após trocar socos. Ao subir na calçada já tão familiar, a uma esquina de sua paupérrima e decadente residência, se perguntava: Será que consigo alguma luta semana que vem?